A poesia é uma das formas literárias mais antigas, mas também está constantemente se reinventando, expandindo suas fronteiras, estabelecendo conexões com outras artes e linguagens, testando novos jeitos e procedimentos. O poema é um lugar em que a linguagem se agita, desafia as normas da gramática e a relação estável entre as palavras e o sentido.
Ler poemas é uma prática, e quanto mais lemos poemas, mais nos tornamos capazes de ler poemas melhor. Mas, ao mesmo tempo, cada poema tem o seu jeito de ser lido, e é comum que a gente se sinta diante de um poema como diante de um texto escrito numa língua estrangeira. A poesia às vezes oferece alguma resistência – porque desvia o uso corrente da língua, porque desdobra os sentidos, porque joga e experimenta com a linguagem, com o ritmo, a forma, o som e o senso das palavras –, mas tudo depende também do modo como nos aproximamos do poema. Porque o que está em jogo quando lemos um poema nem sempre é “entender” o que ele diz, mas é, sobretudo, perceber o que ele faz, sacar os jogos e os procedimentos que ele aciona, desacostumar os olhos e os ouvidos, prestar atenção no modo como o poema se acerca das coisas, atentar para a materialidade das palavras (e mesmo do espaço entre as palavras), ingressar num outro ritmo e num outro universo de sentido… Entrar na experiência do poema e se deixar envolver por ele, como quando entramos no mar ou na música.
A pedido do pessoal da Casa Viva, fiz, sem muita ordem, uma lista de poetas de que eu gosto e de que eu acho que você também pode gostar. Poderiam ser muitos outros; mas uma coisa legal da literatura é que um texto sempre leva a outros textos, outras tradições, outros autores.
Oswald de Andrade
Os poemas de Oswald de Andrade são em geral curtos e cortantes. Um dos grandes expoentes do modernismo brasileiro, autor também de romances cheios de invenção, Oswald escreve uma poesia marcada pela incorporação da fala cotidiana, pelo verso livre, pelo despojamento e pela concisão. Uma poesia com um poder de síntese impressionante, como se pode ver neste poema composto só de duas palavras (uma delas o título):
AMOR
Humor.
Muito antes da invenção do CtrC CtrV, Oswald criou poemas recortando e remontando trechos da Carta de Pero Vaz de Caminha e de outros cronistas coloniais, antecipando assim um procedimento de recorte e colagem que muitos escritores empregam hoje em dia. Ele também dá, no poema “3 de maio”, uma bela definição de poesia: “Aprendi com meu filho de dez ano/que a poesia é a descoberta/das coisas que eu nunca vi”.
Wislawa Szymborska
Wislawa Szymborska é uma poeta polonesa, que nasceu em 1923 e morreu em 2012. Em 1996, ela ganhou o Nobel de literatura. Os poemas de Wislawa Szymborska nos apresentam uma perspectiva renovada tanto sobre temas caros à poesia, como o amor e a morte, quanto sobre questões relacionadas com a ciência, a filosofia, a história e a política. Uma das principais características desses poemas é sua incrível capacidade de inverter o ponto de vista usual e, assim, obter uma visada nova sobre coisas cotidianas e correntes: “Morrer – isso não se faz a um gato”, diz o poema “Gato num apartamento vazio”. No Brasil, a Companhia das Letras lançou duas antologias da poeta: Poemas e Um amor feliz, ambas com tradução de Regina Przybycien.
Manoel de Barros
Os poemas de Manoel de Barros tomam como seu material as coisas consideradas insignificantes, descartáveis, inúteis – tudo isso, ensina o autor, é matéria de poesia. Afinal, “todas as coisas cujos valores podem ser/disputados no cuspe à distância/servem para a poesia”. A poesia de Manoel de Barros está voltada para a infância (das pessoas, das coisas e das palavras), a natureza, a simplicidade e a invenção. Uma poesia que transforma o olhar e areja a linguagem. E que nos mostra que “as coisas jogadas fora / têm grande importância/ – como um homem jogado fora”.
Adília Lopes
Adília Lopes é uma poeta portuguesa que nasceu em 1960. Seus poemas frequentemente são pequenas histórias, muitas vezes com personagens (os gatos e até mesmo as baratas da autora aparecem em alguns poemas!). A própria Adília se apresenta às vezes como personagem desses poemas, juntamente com várias outras figuras literárias, históricas, familiares, inventadas… O resultado é um universo muito particular, habitado por personagens como a poeta Florbela Espanca e o filósofo Diderot, mas também pelas irmãs Marta e Maria, pela Tia Balbina e a avó Zé, pelo gato Raposão. Os poemas são às vezes muito engraçados, mas são às vezes também muito ternos e tristes, e são às vezes engraçados, ternos e tristes ao mesmo tempo.
Ricardo Aleixo
A poesia, como se sabe, é anterior ao livro e à própria escrita. Hoje em dia, muitos poetas trabalham para reconectar a poesia com o corpo e a voz, participando de saraus, slams e performances (às vezes recorrendo à tecnologia, às gravações ou ao vídeo). Ricardo Aleixo é um poeta da voz, embora também escreva para o papel. Os poemas do autor, nascido em Belo Horizonte em 1960, exploram os ritmos e timbres das palavras, inclusive seu ritmo visual e espacial no papel. Uma antologia de seus poemas foi publicada em 2018 pela editora Todavia, mas também dá para encontrar vídeos de algumas de suas performances no youtube.
Arnaldo Antunes
Arnaldo Antunes é mais conhecido pela sua trajetória na música, primeiro como integrante dos Titãs, depois em carreira solo. Mas ele também tem vários livros de poesia, que exploram a visualidade das palavras e o cruzamento de linguagens e suportes. O livro As coisas, de 1992, é o meu favorito: ele recorre aqui a uma linguagem quase infantil, que nos devolve a surpresa de ver as coisas como se pela primeira vez e a alegria de brincar com as definições e jogar com as palavras. Para quem se interessa pelas conexões entre música, performance, literatura e artes visuais e pelas potencialidades das novas tecnologias, vale a pena se aventurar pela obra do autor.
Angélica Freitas
Angélica Freitas estreou na poesia em 2007, com Rilke Shake, um livro explora a sátira, o jogo, o nonsense, o embaralhamento de referências literárias e da cultura de massas. Em Um útero é do tamanho de um punho, esses aspectos se mantêm, mas agora com um viés político mais explícito – os poemas se voltam para as várias figurações da mulher e para os discursos que sobre ela se produzem. Angélica Freitas incorpora, desvia e subverte o clichê, o lugar-comum (que ela capta tanto nas canções ou nos ditos populares quanto por meio do dispositivo de busca do google), e revela que o humor não impede o engajamento nem a reflexão.
Stela do Patrocínio
Stela do Patrocínio viveu durante quase 30 anos como interna na Colônia Juliano Moreira (a mesma onde viveu Arthur Bispo do Rosário). As falas de Stela, muito próximas da poesia, foram gravadas em fitas cassetes e, vários anos depois, transcritas e organizadas pela escritora Viviane Mosé, que as publicou no livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, de 2001. Na história da literatura, não são incomuns as conexões e cruzamentos entre a poesia e os discursos da loucura, do delírio ou do êxtase. Também é antiga e vasta a relação da poesia com o universo dos animais, que comparecem em vários momentos na fala/poesia de Stela. Talvez porque a poesia se interesse pelo que escapa (à razão, à compreensão, à normalidade, à gramática).
Marcelo Montenegro
A poesia de Marcelo Montenegro, reunida recentemente numa antologia intitulada Forte Apache, dialoga com vários outros artistas e com outras artes, em especial a música (o que dá para perceber, de cara, pelo grande número de referências a músicos, compositores, cineastas, artistas plásticos, de Noel Rosa a Marcel Duchamp, de François Truffaut a Tom Zé, de Seinfeld a Homero). Seu livro é pop, inteligente, atento às miudezas cotidianas, cheio de imagens surpreendentes. Um dos poemas do Marcelo, chamado “Eu costumava grifar meus livros”, fala “dos grifos e das dobradinhas que aplicamos na existência”, e é mais ou menos isso que os poemas do Marcelo são: sublinhados feitos sobre os instantes, os afetos, as coisas que não gostaríamos que se perdessem, dobradinhas no canto das páginas das cidades e dos dias.
Que privilégio ter indicações como estas, obrigado Ana e Casa Viva