Sobre Literatura Fantástica e Futuro

“- Queria que o anel nunca tivesse sido dado a mim e que nada disso tivesse acontecido – Frodo

-Assim como todos que testemunham tempos sombrios como este, mas não cabe a eles decidir. O que nos cabe é decidir o que fazer com o tempo que nos é dado. – Gandalf”

Utopia e distopia disputam, em posições diametralmente opostas, a ficção científica – esse gênero da ficção especulativa, relacionado ao futuro. Enquanto as utopias destacam dignidade, acesso, qualidade de vida e beleza (e qual beleza), a distopia representa a antítese da utopia enquanto promove a vivência em uma “utopia negativa”. Elas podem inclusive coexistir: em Elysium (2013, Neill Blomkamp) a distopia na Terra contrasta com a utopia na colônia espacial, e a separação entre os extremos é mantida à força. Vemos o mesmo em Blade Runner (1982, cyberpunk) e Arcane (2021, arcane-steampunk?). Acho que depois da revolução industrial fica cada vez mais difícil imaginar uma utopia plena que não se dê às custas da opressão de alguém… Mesmo as distopias plenas, como 1984, Admirável Mundo Novo, The Matrix, Mad Max, sempre tem gente prosperando, curtindo mesmo. 

Então, ao invés de diametralmente opostas, elas parecem pontos de um mesmo espectro. 

A distopia é uma ferramenta poderosa que escancara o tempo, a cultura, o momento político que a produz. 1984 é escrito no pós-guerra, à luz da ascensão do fascismo europeu e de um mundo bipolar. Robocop (1987) aponta um holofote cáustico para a comercialização de estruturas sociais que deveriam zelar pelo interesse e bem estar de todos, mantendo a prerrogativa do uso da força em uma instância o quão neutra seja possível. 

Mas nenhuma distopia brota do nada. Elas nascem em partos longos, dolorosos, catárticos, absurdos. E não há como negar: vivemos hoje uma distopia. Como em Uma Cilada para Roger Rabbit (1988), o surreal transbordou dos delírios e hoje coabita nossas famílias, nossa comunidade, nossa presidência.

Nessa distopia rebenta do absurdo, a própria ficção científica pode pouco. Faz-se necessário romper com as amarras e contrapesos realistas. E é aí que reside a importância – a meu ver – da fantasia. E da obra literária mais importante de todos os tempos: O Senhor dos Anéis. 

Antes de mais nada: J.R.R. Tolkien, autor de O Senhor dos Anéis, O Hobbit, O Silmarillion, Contos Inacabados, Filhos de Húrin, A Queda de Gondolin e muitos outros, esteve diretamente envolvido com os conflitos da Primeira Guerra Mundial, e indiretamente envolvido com a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, em cartas e entrevistas, faz questão de esclarecer que nunca foi sua intenção criar alegorias ou metáforas, seja para as guerras ou para quaisquer outras questões políticas e socioculturais da modernidade. Porque para ele, alegorias e metáforas tiram do leitor sua principal ferramenta de significado e engajamento: a liberdade. Então não, Sauron não é Hitler ou qualquer outra pessoa real. 

Mas a partir da minha liberdade, concedida pelo próprio Tolkien, me vejo encurralado numa inescapável analogia: a da escolha da esperança. 

Os eventos narrados nos três livros que compõem a saga O Senhor dos Anéis se passam na Terceira Era da Terra Média, um certo período histórico num dado mundo ficcional criado pelo autor. Importante citar que a Terceira Era e a Terra Média não estão isolados no tempo e no espaço: fazem parte de uma cosmogonia diligentemente elaborada, com divindades, semi divindades, cataclismas, tragédias. É, como pretendia Tolkien, uma mitologia propriamente dita. Mais precisamente, uma mitologia unificada para a Bretanha. E é justamente na Terceira Era que os mortais – representados pela linhagem cada vez mais degenerada dos outrora gloriosos reis humanos e os pequenos hobbits – finalmente tem agência. Em outras palavras, depois de quase três eras (a história narrada marca o fim da terceira) onde Valars, Maiars, Elfos, Balrogs, Dragões e outras entidades magnânimas se digladiaram – às vezes literalmente, alterando inclusive a geografia do mundo, às vezes por meio de maquinações e tramas políticas intrincadas. Finalmente, no momento mais dramático onde o destino do mundo pende por um fio (metafórico), os mortais – que tudo tem a perder – finalmente tem agência. Sim, é verdade que pontualmente outros mortais fizeram juz à mitologia. Tuor, Beren. Mas é diferente.

Então, gente simples, pequena (literalmente), tem o destino do mundo nas mãos (literalmente também). Pensa a angústia. 

É nesse contexto que se dá, mais ou menos, a seguinte passagem. Frodo e Gandalf conversam sobre isso tudo o que está acontecendo. Sobre o peso de “viver um momento histórico”. E o Frodo algo como: “Gandalf, eu queria que o Bilbo não tivesse achado o Anel. Que o Anel não tivesse sido dado a mim, e que nada disso tivesse acontecido”. Ao que o Gandalf (que felizmente eu não consigo mais imaginar com outra cara que não seja a do Sir. Ian McKellen) responde, com olhos empáticos mas resolutos: “Assim como todos que testemunham tempos sombrios como este, mas não cabe a eles decidir. O que nos cabe decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado.” 

Acho que todo mundo vai viver um momento histórico, né? Olhando em retrospecto, parece que as coisas se concatenam: tem a pandemia, teve o Golpe em 2016, eleição da Dilma em 2014, primeira eleição do Lula, Plano Real, Renúncia do Collor, Diretas Já, Constituinte de 1988, AI-5, Golpe de 64… Quero dizer, todo mundo tá vivendo algum momento histórico drástico, dramático. Às vezes é grande, global.

Então, de volta à trilogia mais importante do século XX, Frodo e a Sociedade do Anel se vêem frente a uma responsabilidade inexorável. Não a de vencer um grande mal, de derrotar Sauron, de destruir o anel. Pode ser que isso se dê, pode ser que não. Mas de ter esperança. E de tentar mesmo quando não há esperança. 

E olhando para o nosso agora, bem, há. Há esperança. Nessa distopia que ajudamos a construir – sim ajudamos: assistindo CQC e compartilhando ou comentando cada novo absurdo do Jair – há esperança. Porque é compulsório escolhê-la (sim, eu percebi a contradição). 

Então, cortando a bola que o sábio cinzento levantou, o que vamos fazer com o tempo (o momento) que nos foi dado? Derrotar o fascismo e a necropolítica? Soterrar o bolsonarismo nas urnas e na história? Encerrar definitivamente o reinado das fake news e do ódio como política? Pode ser que não. Mas precisamos esperançar e, independentemente disso, tentar.

P.S: Sempre gostei mais do Gandalf que do Yoda, para quem “faça ou não faça; tentar não há”. Isso talvez explique inclusive a decadência dos Jedi e seu posterior massacre quando da Ordem 66. Mas essa conversa fica pra outra ocasião.

.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *