“A irrupção de uma pandemia não se compagina com esta morosidade. Exige mudanças drásticas. E, de repente, elas tornam-se possíveis como se sempre o tivessem sido.” (Boaventura de Sousa Santos)
Parafraseando Boaventura, a docência não compagina com a morosidade. E é a partir dessa constatação que vamos tentar compreender o status do professor no Brasil, especialmente na crise gerada pela pandemia do novo coronavírus, e no cenário imediatamente anterior a ela.
Socialmente, no Brasil, a representação do professor transita entre a romantização do trabalho, a atribuição de um valor messiânico, a valorização parcial ou a indiferença.
Um meme circulou pelas redes sociais, num período anterior à pandemia, cuja imagem era um prédio de apartamentos residenciais, numa madrugada, com algumas janelas com luzes acesas. A pergunta era: onde mora um professor? A ideia do volume do trabalho do professor e da complexidade desse trabalho, apesar de ser de fácil constatação, paradoxalmente vem acompanhada de expressões que relativizam a informação anterior: “professor tem duas férias por ano” ou “professor só trabalha 5 horas por dia”, ou ainda “vida de professor é que é boa”, que revelam, a qualquer tempo, a desconsideração da importância, da qualificação e do valor do professor. Ou seja, sua invisibilidade.
“Existe um debate nas ciências sociais sobre se a verdade e a qualidade das instituições de uma dada sociedade se conhecem melhor em situações de normalidade, de funcionamento corrente, ou em situações excepcionais, de crise” (BOAVENTURA). Nessa perspectiva, a partir de qualquer pesquisa rápida na internet, sobre o fechamento das escolas como protocolo sanitário e a autorização excepcional do trabalho remoto, as informações mais recorrentes retratam o heroico professor que atravessa rios, ou pedala quilômetros, ou usa lan houses para executar o seu trabalho. Todos se comovem com a dedicação missionária desses sujeitos. Essa romantização do processo só confirma a invisibilidade social da docência. Professor não é missionário, é um trabalhador, com formação acadêmica, dentro dos preceitos das Ciências da Educação. Em vez de aplausos pelos esforços individuais para superar a falta de recursos para executar o próprio trabalho, uma sociedade consciente da função do educador deve exigir condições estruturais para as escolas, os professores e os alunos atravessarem com qualidade e dignidade esse momento de crise.
Atualmente, na discussão sobre a reabertura das escolas, mais uma vez, os argumentos construídos confirmam essa invisibilidade. As discussões sobre o retorno e os protocolos gerados dedicam muito espaço para as reflexões sobre os impactos do distanciamento social nos alunos e em suas famílias. Pouco ou quase nada se diz sobre o impacto na vida dos professores e professoras. Sobre o impacto no sujeito, no trabalho, na sua família.
Reiterando que a docência não compagina com a morosidade, ao se autorizar o ensino remoto, professores e professoras, imediatamente se mobilizaram para essa nova demanda. Novos celulares foram comprados, tutoriais e mais tutoriais sobre a gravação de aulas foram assistidos e a rotina doméstica se reconfigurou. Entre os cuidados com a casa, com os filhos, a gravação de vídeos, a elaboração de atividades, a comunicação com os alunos e as famílias, a elaboração de relatórios está um indivíduo, invisível nas discussões sobre os impactos do momento. Invisível nas discussões sobre o retorno, mas publicamente acusado de não querer a reabertura das escolas, por não querer retornar ao trabalho. Trabalho nunca abandonado, trabalho redimensionado e ampliado, levando muitas vezes à exaustão.
Chegamos ao ponto em que é necessário se dizer o óbvio: estamos aqui, somos parte da comunidade escolar, somos pais, somos mães, somos filhos e filhas, maridos e esposas, e não nos foi permitido relatar nossas angústias, nossas preocupações, nossas expectativas, nossas saudades e nossas esperanças.
Estamos aqui!
A maior homenagem ao dia dos professores, neste ano desafiador de 2020, é escutar nosso grito e, assim, espera-se, perceber nossa presença!
Uma questão provocadora e gritante de uma profissão tão desconsiderada. Muito bom, Deia!
Texto Simplesmente maravilhoso e real.
É preciso parar de romantizar a docência como um simples dom, ou uma tarefa feita apenas por amor.
Ela é promovida por meio de muito estudo e esforço. E para obter sucesso, é necessário gostarmos e desempenharmos nosso papel com dedicação, como em qualquer outra profissão.
Continuemos trabalhando Arduamente, pelo direito à educação, fazendo o melhor para atender a comunidade.
Ainda, deixo aqui o meu “muito obrigada” pela abordagem. Continuem instigando a sociedade criticamente, afinal, é assim que seres pensantes despertam.
Parabéns, Andrea.
Nós somos valor-mercadoria para esse sistema.
A tentativa de apagamento da nossa existência e a desqualificação do nosso real valor social revelam muito sobre nossa sociedade.