“Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”
Guimarães Rosa
A viagem ao Quilombo do Capão faz parte do roteiro de excursões previstas para o ensino médio da Casa Viva. Em contraponto à excursão para São Paulo – sua “surra de museus” e o ritmo intenso que dilui os alunos e alunas na massa do cosmopolitismo paulistano – a ida e estadia no Capão propõem outro choque de cultura: uma imersão lenta e deliberada em outro cosmo, mais próximo mas mais distante.
Dentro do universo de práticas pedagógicas da Casa Viva, a viagem ao Quilombo do Capão certamente ocupa lugar de destaque. Muito se prepara para ela, e muito se elabora em sala terminado o roteiro. Mas a potência dessa saída de campo manifesta-se, naturalmente, na jornada. A ida ao Capão é uma jornada para o interior – para os interiores. De óbvio, o interior do estado de Minas Gerais. Situado em Presidente Juscelino, o Quilombo do Capão fica na região de Diamantina, naquele “perto longe” tipicamente mineiro. O cerradão castanho, as árvores, as pedras e as cercas, aos poucos tingidas de um fino pó vermelho, até tudo ser pardo. E vivo, muito vivo. Ipês e quaresmeiras colorem o pó de rosa, amarelo e violeta. Acompanham o micro-ônibus toda sorte de passarinho – como acompanharão cada rota e passeio durante a estadia – dos tucanos aos quero-queros.
A urbanização de Presidente Juscelino é a típica urbanização interiorana: a praça, a igreja, as dezenas de botecos e vendinhas. Isso importa pouco – ainda que se passe parte considerável do tempo nesta região. Importa mais todo o resto. A excursão se dá junto dos eventos que marcam o festival anual Ecologia dos Saberes, que tem por objetivo (não somente) dar visibilidade à cultura quilombola do Capão. E nesse contexto, importa a terna recepção na escola, onde ao menos duas vezes por dia são servidas as arrebatadoras refeições típicas a todos os participantes. Importam as casas que se abrem, suas varandas e alpendres, para compartilhar história e estórias, viola, truco e feijão com pele. Para compartilhar os sonhos e a fé de quem, até pouco tempo, não podia tê-los abertamente, e os tinha como resistência. Importam os quintais, moinhos e tachos, roças e mulas, onde permanecem, talvez por um fio, práticas e tradições que mantiveram viva uma comunidade sobrevivente, e que podem por este mesmo fio conduzir novas gerações a um pertencimento revisto e ressignificado, de orgulho e empoderamento.
A viagem ao Capão é também uma jornada ao interior da história. Da nossa história, sempre em disputa, como nação. De frente pra trás, a começar pelo tombamento do quilombo e sua cultura como bem imaterial. Da aceitação e apropriação, pela própria comunidade, do termo Quilombo, e das implicações de sê-lo. Do retraçado, agora sem medo e desespero, da antiga rota de fuga dos escravizados, num passeio ameno e seguro, cruzando rios e pastos, em estradas largas e bem demarcadas, até a fazenda que recentemente escondeu o pelourinho e transformou as ruínas da senzala em pousada para o crescente movimento de turistas.
E não menos importante, a viagem ao Capão pode ser uma jornada – intermitente – para dentro. Da gente e do outro. As tardes geralmente se encerram num recorte delicioso do Rio Paraúna, raso e fundo, veloz e tranquilo, com pedra e prainha, onde se brinca e matuta em um pôr do sol estonteante. Acampados, a gente compartilha paçoca, lanterna, alguns poucos banheiros e todas as horas. Tira perereca do chuveiro, procura carrapato, sai para caminhar em ruas sem poste para ver estrelas inéditas e trocar contos mais ou menos verídicos. No Capão o tempo é outro, e há tempo pra tudo. Para investigar e analisar cada sentimento e sensação, e repartir, em dupla, trio ou coletivamente, as impressões e percalços que a relação protocolar de sala de aula, restrita às horas previstas, não permite. As relações cansadas e mais ou menos automáticas construídas no cotidiano são irremediavelmente revistas, oxigenadas, definidas nas noites do Capão.
A ida ao Capão é, na verdade, exatamente isso. Ida. Porque do Capão não se volta.