No livro Revolução das Plantas, publicado em 2017, o pesquisador italiano Stefano Mancuso defende a revisão de vários pressupostos à luz de recentes descobertas sobre nossos parentes vegetais. Sugere, por exemplo, rever os conceitos de inteligência e memória, tão associados (antropocentricamente, talvez?) à presença de um cérebro. Propõe, ainda, revermos a noção de domesticação. Nós, Homo sapiens, domesticamos mesmo o milho, Zea mays? O café, Coffea arabica? Ou fomos domesticados por eles? Antes, o que quer dizer domesticar? Como determinar vetores nesse processo constante de dependência e benefício mútuo?
Stefano atua na área de Neurobiologia Vegetal, um recorte acadêmico que parece um oxímoro – afinal, plantas não possuem uma neurobiologia. Ou possuem? Atua também em projetos de Biomimética Vegetal: a busca de soluções tecnológicas inspiradas em soluções evolutivas, principalmente aquelas observadas em plantas. Como um organismo que não pode sair correndo lida com os problemas que surgem onde vive?
Estamos, por coincidência, no país com a maior biodiversidade vegetal do planeta. Entre os pampas gaúchos e a floresta amazônica estendida em platôs rochosos de Roraima, temos campos rupestres, pinhais, mangues, florestas úmidas atlânticas e secos chapadões no meio oeste. Cerrado, cerradão, caatinga, várzeas e igarapés. Além dos jardins, quintais e roçados. Ninguém mais tem isso. Lugar nenhum desse mundão. No excelente Da Botica Ao Boteco a jornalista Néli Pereira defende que nossa tradição do barzinho, da cachaça curtida no cipó-cravo e dos drinks elaborados vem da pobre e desbotada farmacopéia européia, brutalmente colorida pelas matas tropicais – do Brasil e de África – em garrafadas e xaropadas, em unguentos, tinturas e banhos. Então uma lojinha dessas de uma porta só, absolutamente coberta de toda qualidade de caninha, da frente ao fundo, é uma janela para um processo em curso pleno, que começa a milhares de anos atrás, possivelmente em mais de um continente ao mesmo tempo, e que fala de disputas de saberes e narrativas, de sobrevivência, de guerrilha, de sincretismo.
E no entanto, na hora de abordar, em sala, esse universo colossal, falamos de uma botânica mecanicista e desinteressante, estanque com suas angiospermas, floemas e raízes aéreas. De gineceus e estiletes, fanerógamas e anemocorias. De auxinas, cotilédones e flores platônicas. Nada de coentro, carrapicho e cupuaçu, nada de garrafada e cachaça com jurubeba. Nada de angú e paçoquinha e farofa de banana. Nada de Grande Sertão: Veredas. Nada de relações evolutivas e culturais entre uma intrincada rede mutante de organismos, que se estende por 2 milhões de anos. Nada da história de exploração e apagamento das tecnologias farmacêuticas ancestrais, nada do primor técnico por trás da ayahuasca. Nada do impacto da indústria das sementes modificadas e o estrangulamento das tradições caboclas de plantio, colheita e consumo. Nada do agro pop que financia a indústria do sertanejo universitário. Nada da disputa histórica por terras cultiváveis num país continental. Nada das soluções transformadoras (disruptivas, para quem gosta) espreitando a gente de cada galho, de cada flor e resina, de cada matinho espremido entre o passeio e o asfalto.
Foi numa tentativa de significar esse aprendizado que, em 2023, eu levei a 6C para o Mercado Central. Para cheirar, provar, ver e rever, questionar. A infinidade de ervas aromáticas, chás, raízes, paus, cascas e talos, doces, amargosas, azedas. Paredes e mais paredes, teto e chão cobertos de planta seca e fresca, sementes, conservas, frutas – a bucha, a cabaça, a marmelada, a atemóia, as garrafas de pimentas vermelhas, amarelas e verdes e a colher de pau. O jiló fritinho, o biju e o biscoito de polvilho, o abacaxi-pingo-de-mel-da-massa-amarela-de-marataízes cortado na hora. Por que a gente come tomate e maçã (e tomate-maçã) e não come maracujá-melancia, seriguela, cagaita? Por que a gente planta palmeira imperial e não planta jussara, umbu, tamarindo? Por que no norte do país açaí se come sem doce, com farinha e peixe? Como a gente aprendeu a comer mandioca, que vira cianeto na barriga? Por que que a gente não rega planta meio-dia? Quem descobriu que óleo de copaíba é bom para tratar sinusite? Quem tomou o primeiro banho de barbatimão e pra quê?
Apesar de breve, a visita foi um sucesso. Então em 2024, repetimos. Tem coisa demais para ver, para comentar lá. E participa a moça que vende ervas secas, a doninha que vende babosa para o cabelo e arruda para atrás da orelha, o senhor que vende sementes, a menina que tece o cesto de palha. Então é corrido. Mas isso é bom também: a sensação quase metafísica de que existe, ali no centro, um quarteirão coberto abarrotado de detalhes que contam histórias verdes de um mundão, do qual a gente é parte, pelo qual é definido e que contribui ainda mais para gente se enxergar – e se implicar – nesse mesmo mundão.