“Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber
Ni el más claro proceder, ni el más ancho pensamiento”
Volver a los Diecisiete – Violeta Parra, musicista e compositora chilena
“Onde há verdade, não há reflexão”.
Humberto Maturana
No início de maio, em meio a outras tristezas, perdemos Humberto Maturana. Sua obra permanece, claro. E o impacto de sua obra ainda está para ser totalmente compreendido: o médico, neurobiólogo, filósofo e autor chileno, candidato ao Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia foi tão prolífico quanto profundo.
Parece paradoxal celebrar a vida e a obra de um pensador tão incrivelmente atento e… vivaz, falando de sua morte. Então não falemos.
SOBRE IDEIAS
Vez por outra – é raro, já adianto – surgem ideias que alteram um paradigma de tal forma, que por muito tempo parece impossível não vê-las em tudo. Elas aparecem nas mais diversas instâncias do conhecimento: aparecem na Filosofia, na Comunicação, na Sociologia e eventualmente nas Ciências da Natureza. Mas porque alteram um paradigma, não é incomum que elas transbordem seu campo original.
Um exemplo é a teoria da evolução das espécies por seleção natural.
A ideia de que as espécies mudam com o tempo não era, no início do século 19, nova. O ineditismo da hipótese de Darwin e Wallace está em propor que a mudança seria aleatória e que o ambiente então selecionaria as mudanças. A teoria (e teoria, no linguajar científico, implica alto grau de comprovação) foi aprimorada pela adição posterior da Genética, mas o mérito do insight é inequívoco. A Evolução Por Seleção Natural, como exposta no livro Origem das Espécies, em 1859, é de uma elegância atemporal. E hoje é impossível esquivar-se dessa ideia ao observarmos o desenvolvimento do conhecimento humano, do avanço tecnológico ao entendimento das relações sociais.
Essas raras ideias têm uma simplicidade desconcertante, escondida (mas não muito) na complexidade e no caos das coisas.
Outro exemplo de ideia revolucionária é a autopoiese, como proposta pelo então professor Humberto Maturana na década de 1970. No Departamento de Biología de la Facultad de Ciencias de la Universidad de Chile, junto de seu aluno Francisco Varela, cunhou o termo para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios. Para a dupla, todo ser vivo é um sistema auto constituído, uma rede fechada mas porosa de produções moleculares em que as moléculas produzidas geram com suas interações a mesma rede de moléculas que as produziu. Mas essa autonomia biológica, que busca manter-se coerente ao permitir-se mudar, se entrelaça com a dependência do meio, de onde se retiram os recursos, de modo que organismo e ambiente (considerando inclusive outros organismos) influenciam e são influenciados. Essa ideia de acoplamento completa a autopoiese, e estabelece as bases biológicas da cultura e da vida social.
Em outras palavras, que os seres vivos estão, o tempo todo, produzindo a si mesmos, respondendo ao ambiente externo e interno, constituindo e constituindo-se. Para a autopoiese, não existe vida (como conceito abstrato e independente). Existe ser vivo.
Ernst Mayr, biólogo alemão, defende ao longo de sua obra que as Ciências Biológicas, tendo como objeto de estudo o campo da vida, e portanto existindo no intermédio entre as “ciências duras” e “ciências macias”, precisaria de uma filosofia própria. Uma abordagem filosófica que seja tão única e diversa quanto seu objeto de estudo (a vida que inexiste sem seres viventes). E é exatamente aí que entra a autopoiese. Assim como a evolução darwiniana apresenta uma explicação elegante para a origem e a diversidade da biologia, e acaba explicando também outras diversidades, a autopoiese começa explicando elegantemente as relações biológicas intrínsecas e acaba explicando também outras relações.
E essa ideia apresenta um panorama (um paradigma) diferente para o entendimento de escola.
SOBRE ESCOLAS E INFÂNCIAS
Não sei se, a essa altura, ficou claro. Sou biólogo licenciado. Decidi pela licenciatura porque fui péssimo aluno. Exemplo a não ser seguido, bullie, opositor e debochado. Não me parecia razoável que nossa vida escolar estivesse fadada à experiência unidirecional de decorar (e esquecer) conhecimentos diversos. Decidi pela licenciatura sabendo o que eu não queria ser, o que não funcionava. Mas eu não tinha a menor ideia de qual seria a outra opção. Continuei péssimo aluno na graduação.
Conheci Humberto Maturana muito depois de formado. Me fisgou primeiro a inédita obviedade biológica da autopoiese. A sugestão de que a Biologia e a Psicologia eram diferentes regiões de um continuum é acachapante, assim como suas implicações. Foi a autopoiese – uma chave de interpretação da biologia, e portanto da humanidade, e portanto da infância – que me explicou porque um péssimo aluno decidiu ser professor.
Discordo veementemente que a docência é um dom, ou um chamado. Para mim a docência é um desaforo, uma insolência. E que, em retrospecto, começa na infância, naquele frustrante primeiro contato com a escola.
Para Maturana, crianças não são projetos. A infância não é uma fase de preparação para o futuro. A infância, com seus espaços e fazeres, não é um treino. A infância é, por autodefinição (observe qualquer criança) uma existência no presente.
Defende que uma escola pautada pela competição é necessariamente uma escola que ignora a criança do agora, ao mirar (e errar) um indivíduo futuro. A competição tira a criança de si, e a coloca daí pra frente sempre contraposta a outra criança, por sua vez contraposta a outra, numa corrente de ausências e negações. A educação competitiva é necessariamente desrespeitosa ¹ e ausente de significado.
Autopoiético, o ser humano é social e comunitário. Comunidade é o que se vive – com quem e onde se vive. É o entorno concreto e necessário. E por isso Maturana contrapõe conhecimento e entendimento. Uma educação baseada no acúmulo de conhecimento é projetista, da criança como um vir-a-ser: é necessário acumular uma quantidade (crescente) de informações para, a partir de uma “massa crítica”, ser alguém. Ser algo. Participar da vida social, da comunidade.
A pedagogia do entendimento, por outro lado, considera que a criança já é. Já é um indivíduo, já é cidadã, já participa – desde antes do nascimento – da comunidade. A educação para o entendimento propõe uma “orientação da mirada” naturalmente interessada e curiosa: o docente é mediador do encanto (que já existe) e do significado (que é dado a partir do contexto). Não um significado teo ou teleológico, a priori, mas um significado partícipe. A educação é significativa na medida em que proporciona ao indivíduo sentir-se partícipe no mundo em que vive. E o que se vive ganha sentido quando é possível refletir, vendo e sentindo os efeitos da própria existência e do exercício da autonomia.
A infância como projeto pressupõe que a formação do cidadão é anterior ao exercício da cidadania. Você que me lê, responda: se considera formado ou formada? Se sim, desde quando? A pedagogia do entendimento defende que o exercício da cidadania é indissociável da formação cidadã, e que ambos são concomitantes e constantes. Também considera – sempre – os resultados e consequências da participação social.
SOBRE EMOÇÕES E UTOPIAS
Para Maturana toda teoria é uma construção racional a partir de certas premissas fundamentais não racionais aceitas a priori. Premissas a-racionais. O que guia a conduta humana (entidade autopoiética) é a emoção. Usamos a razão para justificar, defender ou negar desejos, medos, propósitos – todos emocionais. É possível refutar qualquer teoria ao se abandonar a defesa da premissa a-racional, enquanto o apego pétreo à mesma conduz ao dogma. Acontece que para refletir, é necessário desapegar-se. E refletir é imprescindível para conhecer – deixar aparecer, deixar revelar – a si, ao outro, aos fenômenos. Se o objetivo da vida escolar é preparar para um futuro, uma ideia específica e formatada de futuro, não há possibilidade de deriva. De deixar ser, de permitir encontrar-se. E é aí que Maturana introduz o ato de amar como evento originalmente biológico. Não é possível fluir sem amar (cuidar). Melhor dizendo, não é possível encontrar-se e facilitar o encontro sem um espaço seguro e de cuidado. Sem um espaço amoroso. Maturana discorda de Rousseau: o homem não nasce bom. Nasce amoroso.
Amar, enquanto processo complexo que combina cuidado, respeito e honestidade com responsabilidade e orientação caridosa, é a emoção que funda a possibilidade da existência humana. É a emoção que faz possível a permanência e a convivência, onde pode nascer a linguagem. Amar (cuidar) é pressuposto autopoiético.
Se a miríade de desdobramentos do conceito de autopoiese ainda não te parece transformadora o suficiente, é na conjunção com o amar que a autopoiese apresenta sua mais poderosa “topia”: a proposta realista (porque calcada na nossa biologia) de uma pedagogia que pressupõe o ato de amar (e tudo aí implícito) como fundamento primeiro de toda a relação humana.
A obra de Maturana unifica o universo do humano e oferece diagnóstico de nossa patologia social, e enquanto escancara nosso lugar na natureza, também a partir dela apresenta um roteiro de reflexão e regeneração. Tarefa nada simples. Mas se por um lado o entendimento integral de sua obra nos exige (como lhe exigiu) uma vida, a implementação de seus pressupostos já está em curso. Seja na insolência que nos afasta instintivamente de uma educação projetista, seja no desapego responsável que nos permite enxergar o outro como outro, respeitando e estimulando seu espaço, seu tempo e sua autonomia.
Humberto Maturana viverá sempre na nossa autopoiese.
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1 É inclusive na questão da competição que Maturana propõe uma releitura das conclusões de Darwin. A ideia de que a seleção natural se daria por competição foi aproveitada por Darwin e Wallace a partir do trabalho dos cientistas sociais e economistas do século 19. Para Maturana, o viver se dá em um presente cambiante contínuo. Não em comparação ou competição com outros viveres, mas num fluir (deriva) que busca a auto regulação (e por tanto o bem estar).